Conflitos interfederativos na instalação do Comitê Gestor do IBS

A Emenda Constitucional nº 132/2023, que instituiu a reforma tributária, consagrou a adoção de um Imposto sobre Valor Agregado dual (IVA dual), criando o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), cuja administração competirá ao Comitê Gestor, composto por representantes dos estados e dos municípios, e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência da União.

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Apesar de serem dois tributos distintos, consideram-se “irmãos gêmeos”, pois possuem, por força constitucional, mesmos fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência e sujeitos passivos; imunidades, regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação; regras de não cumulatividade e de creditamento (artigo 149-B).

Assim, não é difícil visualizar os inúmeros conflitos que podem surgir a partir da dualidade de tratamento dos “irmãos gêmeos”. Afinal, uma vez que são idênticos, presume-se que os contornos jurídicos de ambos os tributos devem obedecer às mesmas lógicas. Pense-se, por exemplo, no caso em que o Carf fixe uma determinada tese acerca da CBS antes do mesmo tema ser enfrentado no Comitê Gestor do IBS. Tal decisão também deveria ser aplicada pelas instâncias julgadoras do IBS? Seria possível divergir? Como uniformizar?

Não são respostas fáceis. Todavia, evidencia-se que a problemática atual envolve um conflito intrafederativo, mais precisamente entre os municípios, e que acaba gerando um potencial embate interfederativo com os estados, qual seja: a instalação provisória do Comitê Gestor do IBS sem representantes dos municípios.

O artigo 156-B, §3º, da Constituição, inserido pela EC 132/2023, prevê que o Comitê Gestor será composto por 54 membros, sendo 27 representantes do estado e 27 dos municípios. Apesar de o IBS ainda não estar sendo exigido no exercício de 2025, é certo que sua estruturação é primordial para que possa operar normalmente a partir de 2026, quando se iniciará a exigência de uma alíquota teste do IBS.

Visando custear as despesas iniciais do Comitê Gestor, a União comprometeu-se a emprestar R$ 600 milhões de reais (R$ 50 milhões mensais), valor este que será amortizado com a arrecadação do IBS ao longo do tempo. Todavia, o montante mensal prometido pela União somente seria disponibilizado após a devida instalação do Comitê Gestor. Mas como instalá-lo sem a presença dos municípios?

Por força do artigo 483 da Lei Complementar nº 214 de 16 de janeiro de 2025, o Conselho Superior do CGIBS deveria ser instalado em até 120 dias contados da data de sua publicação.

Nesse contexto, a celeuma surge a partir do momento em que a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) e a Federação Nacional dos Prefeitos (FNP) não conseguem definir, conjuntamente, as regras e demais pormenores da eleição para escolha dos representantes municipais no comitê. Por outro lado, os membros titulares e suplentes dos representantes dos estados e do Distrito Federal no Diário Oficial da União de 11/4/2025, ou seja, dentro do prazo fixado pela Lei Complementar nº 214/2025.

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A FNP narra em sua inicial, que deu origem ao Processo 0718870-09.2025.8.07.0001, em trâmite na 11ª Vara Cível do TJ-DFT, que a CNM aprovou um edital e um regulamento eleitoral, incorporando a esses documentos todas as posições defendidas pela CNM, a despeito da oposição da FNP quanto à higidez e à legalidade do processo eleitoral sob tais condições. A liminar fora concedida, de modo a suspender o processo eleitoral, sendo a decisão confirmada pelo TJ-DF no Agravo de Instrumento 0714569-22.2025.8.07.0000.

Acontece que, por tabela, os estados, que não participam da referida disputa, viram-se diante do seguinte questionamento: seria possível, sem a inicial participação dos municípios, instalar o Comitê Gestor provisório previsto para o exercício de 2025, no artigo 484 da LC 214/2025?

A partir disso, o Comitê Nacional de Secretários de Fazenda, Finanças, Receita ou Tributação dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz) formalizou uma consulta ao Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal (Conpeg), no qual questionou acerca da possibilidade de adoção de iniciativas relativas à instalação e aos demais atos relativos ao funcionamento do Conselho Superior do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (CG-IBS), com a participação apenas dos membros representantes dos Estados e do Distrito Federal.

O Fórum Nacional das Consultorias Jurídicas das Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal (Fonacon), órgão auxiliar do Conpeg, emitiu parecer jurídico em resposta à consulta do Comsefaz, o qual foi homologado pelo Conpeg.

O parecer do Fonacon sustenta, em linhas gerais, que a própria Lei Complementar 214/2025 já fornece a chave para solucionar o impasse: o artigo 483, § 1º, II, b, prevê a “instalação ex lege” do Conselho Superior do CG-IBS na data-limite de 120 dias (ou seja, em 16 de maio de 2025) caso nem todos os seus membros tenham sido indicados, precisamente para evitar que litígios atrasem a execução da reforma tributária. Como os 27 representantes dos estados e do Distrito Federal foram regularmente publicados no DOU em 11 de abril de 2025, enquanto a escolha dos representantes municipais ficou paralisada por disputas eleitorais judicializadas entre CNM e FNP, o parecer conclui que nenhuma norma impede o funcionamento provisório do colegiado com composição parcial.

A conclusão apoia-se também nos artigos 483 e 484 da LC 214/2025, que condicionam a liberação do financiamento federal de R$ 600 milhões — reduzido em 1/12 a cada mês de atraso — à comunicação oficial de instalação e à abertura de conta bancária pelo presidente eleito do comitê. A eleição do presidente e dos dois vice-presidentes, portanto, é vista como consequência lógica da instalação legal automática; sem esses cargos não seria sequer possível receber os recursos, o que comprometeria o cronograma de implementação do IBS.

Por fim, o Fonacon enfatiza que princípios constitucionais da continuidade do serviço público e da eficiência impõem evitar a paralisia do CG-IBS; sustenta que a ausência momentânea de representantes municipais não pode gerar assimetria federativa nem retardar a reforma, sobretudo diante da postura já proativa da União na implantação da CBS. Assim, declara-se juridicamente possível — e institucionalmente recomendável — que estados e Distrito Federal prossigam com todos os atos de constituição e funcionamento do comitê, inclusive a eleição da presidência, até que os municípios componham sua representação, ressaltando o caráter transitório, não excludente e pautado pela presunção de constitucionalidade da legislação.

Maturidade institucional
A partir da decisão dos estados de instalar o Comitê Gestor, naturalmente, surgiram as manifestações contrárias por parte de representantes dos municípios. Apesar disso, em medida que demonstra cautela, elegeu-se apenas o presidente, mas não os cargos de vice-presidentes, que poderiam ser ocupados pelos municípios.

Os argumentos apresentados pelo Conpeg, por meio do Fonacon, e que foram incorporados pelo Comsefaz para subsidiar a decisão de dar início aos trabalhos do comitê, demonstram a complexidade da relação interfederativa imposta pela reforma tributária, e que os conflitos, ainda na fase pré-inicial do IBS. Aliás, não apenas entre entes de níveis diversos, mas evidentemente disputas entre entes federativos de mesma natureza.

Tanto os fundamentos jurídicos expostos, notadamente a interpretação calcada na LC nº 214/2025, bem como na repercussão econômica do atraso no início do funcionamento do comitê, de perda de repasse de cerca de 50 milhões por mês, reforçam que os estados não poderiam se ver reféns de um conflito do qual sequer participam. Não bastasse, enquanto a União vem providenciando toda a estrutura para a operacionalização da CBS, os estados e municípios ficariam para trás, fragilizando-se a relação federativa entre os entes e possibilitando ainda mais proeminência à União.

Não são poucos os espaços em que as divergências ocorrerão. Afinal, os interesses do município de São Paulo são os mesmos daqueles dos municípios do interior da Paraíba? Ou os estados estarão comprometidos entre si em pautas que interferem nos municípios e vice-versa? Espera-se que o Conselho Superior do Comitê Gestor possua a maturidade institucional suficiente para manter o pleno funcionamento, com a harmonia possível, e com os meios adequados para não permitir que a União se sobreponha aos demais entes federativos por meio da construção da CBS e de seus contornos que, repita-se, é um “irmão gêmeo” do IBS.

Ademais, interessante a construção da solução apontada, demonstrando uma articulação dos estados a nível de Secretarias da Fazenda e de Procuradorias-Gerais dos Estados, de forma a conferir segurança jurídica à atuação do Comitê Gestor mesmo antes da sua existência.

Espera-se, portanto, que a reforma tributária não seja paralisada em razão de disputas por espaço, mas que o Comitê Gestor seja uma ampla e democrática instância apta a garantir os interesses dos entes federativos, e, sobretudo, dos cidadãos, que aguardam para saber o que, de fato, mudará em suas vidas com o novo sistema tributário inaugurado pela EC nº 132/2023.

Eliphas Neto Palitot Toscano
é procurador do estado da Paraíba, mestrando em Direito Econômico pela Universidade Federal da Paraíba, coordenador jurídico da Secretaria de Estado da Fazenda, representante da PGE-PB no Conselho de Recursos Fiscais e membro do Fórum Nacional das Consultorias Jurídicas das Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal (Fonacon).

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