Tudo errado; por Ivandro Oliveira

Há algo de profundamente errado quando o Estado decide tutelar a fé alheia — especialmente a fé de quem não pediu tutela alguma. A notícia de que o Ministério Público pede R$ 2 milhões de Cláudia Leitte por ela ter alterado a letra da própria música não é apenas curiosa: é sintomática.

Segundo o MP, a cantora teria cometido “dano moral coletivo” e praticado “intolerância contra religiões de matriz africana” ao substituir, em uma apresentação, o verso que citava Iemanjá por uma menção a Yeshua, nome hebraico associado a Jesus Cristo. O detalhe que parece escapar à acusação é simples, quase banal: Cláudia Leitte é cristã e a música é dela.

O órgão sustenta que a alteração “descontextualiza a obra original” e promove um “apagamento simbólico” de referências religiosas historicamente marginalizadas. Mas aqui surge a pergunta incômoda: como se apaga simbolicamente algo que o próprio autor decide ressignificar? Desde quando a obra deixa de pertencer ao artista e passa a ser patrimônio imutável do Estado?

A crônica do absurdo se completa quando o Ministério Público, sob o pretexto de defender a tolerância religiosa, resolve punir uma manifestação explícita de fé cristã. Em nome da diversidade, censura-se a diversidade. Em nome da liberdade, multa-se a liberdade. Em nome da tolerância, pratica-se a intolerância.

Não se trata de negar a importância histórica e cultural das religiões de matriz africana, nem de ignorar o racismo religioso que existe no Brasil. Trata-se, sim, de reconhecer que liberdade religiosa não é um cardápio seletivo, onde algumas crenças merecem proteção estatal e outras precisam pedir desculpas por existir.

O Estado brasileiro, esse velho conhecido por sua eficiência duvidosa, agora parece confortável no papel de curador espiritual da nação. Decide o que pode ser cantado, como deve ser cantado e, sobretudo, qual fé pode ser exaltada sem risco de sanção milionária. Tudo isso enquanto serviços básicos seguem precários e prioridades reais continuam em segundo plano.

A ironia é quase pedagógica: ao tentar combater a intolerância, o poder público escolhe um alvo específico — uma artista cristã — e transforma sua expressão religiosa em caso judicial. O resultado é o oposto do pretendido: reforça-se a sensação de perseguição seletiva e alimenta-se uma disputa que só beneficia a polarização.

Se mudar a letra da própria música para refletir a própria fé é crime, então não estamos discutindo tolerância religiosa, mas controle ideológico. E quando o Estado começa a regular símbolos, palavras e crenças, a história mostra que o próximo verso a ser silenciado pode ser qualquer outro.

No fim, fica a pergunta que ecoa mais alto que qualquer refrão: quem vigia os vigilantes da tolerância? E quem protege a liberdade quando ela se torna inconveniente demais para o discurso oficial?

Porque, ao que tudo indica, nesta partitura institucional, a liberdade de expressão religiosa só é bem-vinda quando canta em tom autorizado.

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