O voto de Fux e o limite da toga; por Ivandro Oliveira

Foto: Elza Fiuza/Agência Brasil

No julgamento da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre as medidas cautelares impostas ao ex-presidente Jair Bolsonaro, o ministro Luiz Fux protagonizou um momento raro – e crucial – de dissidência institucional. Último a votar, Fux abriu divergência em relação ao relator Alexandre de Moraes, que determinou o uso de tornozeleira eletrônica por Bolsonaro e outras restrições no âmbito do inquérito que investiga suposto atentado à soberania nacional. Com precisão cirúrgica e notável sobriedade, o voto de apenas cinco páginas de Fux foi mais contundente do que qualquer discurso inflamado. Foi um lembrete de que o Direito ainda importa.

Ao afirmar que não se vislumbra “a demonstração contemporânea, concreta, individualizada dos requisitos que legalmente autorizam a imposição dessas cautelares”, Fux derruba, em juridiquês elegante, a construção de aparência legal erguida por Moraes. Em termos simples: o ministro disse, com todas as letras, que faltam provas, faltam fundamentos e sobra arbitrariedade. A toga virou instrumento de coerção política.

Mais do que uma crítica técnica, o voto de Fux é uma denúncia institucional. Quando fala em “desproporcionalidade”, ele não está apenas apontando um exagero – está acusando uma violação constitucional. No ordenamento jurídico brasileiro, a proporcionalidade é princípio basilar, não uma recomendação moral. Ignorá-lo é desrespeitar a Constituição. E foi exatamente isso que, nas entrelinhas, Fux afirmou que Moraes fez.

A coragem de divergir tem peso extra neste caso. Desde que se tornou relator de inquéritos de grande impacto político, Alexandre de Moraes construiu uma imagem de infalibilidade, reforçada pelo apoio constante de colegas e pelo manto do colegiado. Romper essa unanimidade é, em si, um gesto político – e, neste caso, um gesto de resistência institucional. Ao discordar, Fux rompe o silêncio que vinha sustentando decisões muitas vezes polêmicas, amparadas mais pela autoridade do cargo do que pelo rigor jurídico.

Há, ainda, um detalhe simbólico: Fux escolheu esse caso, envolvendo Bolsonaro, para fincar sua divergência. Não é casual. Ele sabe que o STF está sob holofotes nacionais e internacionais, e que cada movimento da Corte é interpretado também como uma sinalização política. O recado é claro: a perseguição judicial ao ex-presidente está passando dos limites aceitáveis, transformando o STF de guardião da Constituição em ator político com pauta própria.

Juridicamente, a dissidência abre caminhos. A defesa de Bolsonaro poderá agora tentar levar a questão ao plenário completo do STF, onde a visibilidade é maior, e onde o custo político de apoiar medidas desproporcionais é mais alto. Votar no sigilo do plenário virtual é uma coisa. Justificar o injustificável sob os olhos das câmeras, outra bem diferente.

Mais importante: o voto de Fux pode se tornar referência. Em futuros questionamentos a medidas cautelares similares – ou a outros abusos travestidos de legalidade – juristas, advogados e ministros poderão citar sua posição como marco de equilíbrio e respeito ao devido processo legal.

Luiz Fux, jurista respeitado, ex-presidente da Corte, sabe o peso que carrega sua caneta. Seu voto não foi apenas uma discordância – foi um alerta. Alerta ao STF, ao país e ao mundo: há limites. E quando um juiz começa a agir sem eles, a toga deixa de ser símbolo de justiça para virar instrumento de arbítrio.

Hoje, Fux votou sozinho. Amanhã, talvez não esteja mais só.

Ivandro Oliveira é jornalista

Compartilhe: